À rasca
Uma edição onde se espremem algumas ideias, se encontram algumas soluções, se fazem algumas contas e, no fim, se diz uma asneira e ainda se retira uma bela de uma insónia crónica.

Disse ao meu psicólogo que me candidatei para ir trabalhar na Feira do Livro. Estava à espera de que ele me perguntasse, Mas está assim tão mal de dinheiro?, porque ainda na última sessão tínhamos falado das minhas finanças, mas ele, como psicólogo que é, quis destrinçar as minhas motivações. Eu disse-lhe que há duas razões principais, nenhuma das quais tem diretamente que ver com dinheiro. A mais simples é só porque preciso de arejar. A outra, e talvez a principal, é porque quero desconstruir, ou confirmar, a narrativa que criei para mim praticamente desde que comecei a traduzir: sou introvertida, logo, não gosto de lidar com o público; trabalho com a palavra escrita, logo, não me sei articular na falada; gosto de trabalhar sozinha; logo, não sei trabalhar em equipa.
É que nada disto é verdade. Tirando a parte de ser pouco eloquente, facto esse inegável, mas até isso, com prática e jeito, se aperfeiçoa. Sim, gosto de estar sozinha, mas (já) não sou nenhum bicho-do-mato. Apesar de preferir encontros individuais ou pequenos grupos, também já me vou safando em grupos maiores. A idade não pode trazer só rugas e dores no corpo, também nos dá maturidade para nos movimentarmos nas mais diversas áreas da vida. Já não estou é habituada a trabalhar com gente, mas quando trabalhava, dava-me bem com os colegas. E os meus primeiros empregos, quando saí da faculdade, foram inclusivamente no atendimento ao cliente. Trabalhei numa espécie de call center premium para clientes ingleses e alemães que viviam em Portugal e, em Berlim, trabalhei na receção de uma escola de línguas e dei aulas de português como língua estrangeira. E sabes que mais? Fazia bem o meu trabalho e tinha dias que, nas aulas, nem me reconhecia (pela positiva).
Não estou a dizer que o que eu agora quero é trabalhar diretamente com clientes, mas estou a tentar perceber o que posso fazer além da tradução e, bom, há uma miríade de coisas que eu gostaria de fazer que requerem a interação direta com outros seres humanos. Como, por exemplo, ser livreira.
Nesta parte, o meu psicólogo abriu muito os olhos, A sério? Não imaginava que fosse dizer isso, e eu expliquei-lhe que, bem, por um lado, gosto de livros e acho fascinante passar o dia rodeada deles e recomendá-los às pessoas, mas por outro, estou bem ciente dos ordenados baixos e da rotatividade de horários. Ser livreira, apenas se a livraria fosse minha. Não vai acontecer, portanto.
(Nesta parte, ele falou-me de um livro que tinha lido meio desconfiado, porque um título como Uma Livraria na Colina não se supõe literatura séria para alguém que, como ele, tem sempre livros daqueles muito chatos na mesinha de apoio do seu gabinete e que a coisa mais mainstream que lhe conheci foi o Herbarium, da Emily Dickinson).
A Feira do Livro pareceu-me – e ele aqui percebeu o meu ponto – a possibilidade de brincar às livreiras e, quanto a apurar as minhas competências sociais, a solução mais imediata, sem compromisso e de duração definida que tenho à disposição. Se não gostar, tem prazo para acabar e não vem mal ao mundo.
Então e, além de ser livreira, que mais é que gostaria de fazer?, perguntou ele.
Ora, adorava trabalhar numa editora.
E porque é não tenta?
Porque não tenho nem experiência nem as habilitações necessárias.
E que habilitações são essas?
Ele há um mestrado.
E porque é que não pensa nisso?
Ah, agora ir estudar outra vez.
A conversa prosseguiu e tomou outras proporções, nomeadamente, porque é que elenco sempre tudo o que acho que me falta:
não domino a linguagem académica para conseguir escrever uma dissertação
não tenho ideia nenhuma para o que poderia ser o meu trabalho de projeto
eu ir fazer um estágio, com a minha idade?
em vez de pensar no que posso vir a adquirir:
que tenho três semestres para fazer um refresh da linguagem académica
que ninguém começa um mestrado já a saber o tema do trabalho final
e isso da idade, olhe, quer mesmo que comente?
De modo que cheguei a casa e me pus a pesquisar mestrados, o que tanto me entusiasmou como me baralhou. Se eu já não sabia o que queria fazer da vida, agora é que fiquei ainda mais confusa.
O que eu sei é que as coisas não podem continuar como estão. E como estão elas? Bom, basicamente, não tenho dois tostões. E apesar de haver várias razões para estar profundamente desiludida com o mercado e a profissão, hoje vou falar-te apenas de uma, quiçá a principal, aquela para que todas convergem, que é a financeira.
Ora, as tarifas pagas aos tradutores em Portugal não são apenas baixas - são ridiculamente baixas e estão estagnadas há décadas. No início deste ano, tentei aumentar 0,50 € do meu preço/páginas a duas editoras que ainda me pagavam abaixo do que considero o valor mínimo, que são 8 € por página de 1800 carateres, e fui recebida com dois nãos redondos, uma delas até alegando que não me ia passar mais trabalho porque não estava no momento de ela, a editora, fazer um acerto dos seus preços. Como se fossem eles os fornecedores de serviço e eu, o cliente. Como se o doente fosse à consulta do cardiologista, chegasse lá, visse o preçário, e dissesse: Nã, nã, nã, eu ainda não ajustei os meus preços para este valor, vou pagar o que pagava há vinte anos, tome lá esta notinha e não diga que vai daqui.
Infelizmente, a situação no mercado editorial inverteu-se (quando? desde sempre?) e não são os tradutores – que são os fornecedores – a fazer os preços, mas sim as editoras – que são os clientes – a dizer quanto é que pagam. Se o tradutor tiver nome na praça ou já for conhecido da editora, pede naturalmente mais, mas também corre o risco de, como me aconteceu a mim, ser descartado como um trapo velho. E era uma editora com a qual eu trabalhava já há uma mão cheia de anos, não se pode dizer que fosse propriamente uma desconhecida com exigências mirabolantes.
Para te ajudar a perceber se 8 € por página é muito ou pouco, vou fazer-te umas continhas de um dos últimos livros que traduzi e pelo qual até recebi a loucura de 9 €, porque era do alemão, totalizando 1926 €. Trabalhei nele de setembro a novembro do ano passado, uma altura em que tive muito pouco trabalho, sendo que esse livro constituiu praticamente a minha única fonte de rendimento. Foi um livro exigente, que não me permitiu estar mais do que 5 a 6 horas por dia de volta dele sem ficar com os olhos em bico. Não foram três meses de trabalho intenso, portanto. Pude dar-me a esse «luxo», porque não tinha outros trabalhos, mas feitas as contas ao total de horas que levei, foram garantidamente entre 6 a 7 semanas. Portanto, vá, na melhor das hipóteses, se lhe tivesse dado gás e feito tudo de seguida, teriam sido 1926 € por mês e meio. Ena. Parece-te muito? Ora, vejamos.
Vou apresentar-te umas contas por alto dos impostos obrigatórios para um trabalhador independente em regime simplificado. É capaz de variar um pouco, consoante o valor pago à segurança social, mas isto é só para te dar uma ideia de quanto fica para o tradutor no final de um trabalho «extremamente» bem pago a 9 € a página.
Portanto, dos 1926 € recebidos pela tradução de um livro, 25% foram (isto foi o ano passado, porque este ano o valor da retenção na fonte desceu para 23%) para a retenção na fonte. Ficaram 1444,50 €. Daí foi necessário pagar as contribuições obrigatórias para a segurança social. Digamos que, na altura, estariam nos 139,81 € (foi mais), valor pago mensalmente. Portanto, duas prestações depois, fiquei com 1164,88 €.
Para mês e meio – isto, sem contar com as subscrições necessárias para o exercício das minhas funções, como a Infopédia, o Adobe, o programa de OCR, o antivírus, apenas para nomear algumas, e com os feriados e os dias de férias que ninguém mos paga.
Vale a pena ainda mencionar que, consoante a editora, este valor é pago 30, 60 ou 90 dias após a entrega da tradução. Portanto, comecei a trabalhar em setembro e, neste caso em concreto, recebi no final de dezembro, mas podia ter recebido apenas em fevereiro, se fosse para outra editora. E isto foi uma tradução paga a 9 €, porque era do alemão. Se fosse do inglês, o mesmo número de páginas, pagas a 8 €, dava 1710 €. Feitas as contas acima, eu ficava com... 1003 € para… um mês e meio!
Ah, dizes tu, mas as contas não podem ser feitas assim (pois não, é pior) e, além disso, é um trabalho que te realiza e tens o teu nome na contracapa, às vezes, até na capa (na capa só foi uma vez, mas adiante).
Muito bem. É então chegada a altura de voltar à foto da newsletter anterior, que prometi explicar-te:
Este excerto é do livro Hey guten Morgen, wie geht es dir? que ganhou o prémio do livro alemão de 2024. Acabei de o ler ontem; gostei, embora não tenha adorado, porque o achei bastante triste e algo difícil de acompanhar, pois tem uma narrativa diferente do habitual. É sobre Juno, uma bailarina (dançarina?) performativa que tem de cuidar de Jupiter, o marido doente, o qual, por sua vez, também é artista, neste caso, escritor. Vivem ambos de subsídios e adiantamentos, e as dificuldades financeiras do casal são uma constante ao longo de todo o livro. Diz este excerto:
«Ela mostrou a Jupiter uma fotografia de um dos cartazes [contexto: onde Juno surge como cabeça de cartaz de um espetáculo de dança].
Fixe, disse ele.
Pois, mas é estranho, disse Juno.
O que é que é estranho?
Que apareça em cartazes por toda a cidade, mas continue a ver-me à rasca para pagar a renda.»
«gerade noch so zahlen» indica que a pessoa ainda conseguiu pagar a renda, mas foi ali no limite, por um triz, por pouco, resvés, basicamente, não sobrou grande coisa. Vê-se à rasca, portanto.
Posto isto, alguém me explica porque é que, em pleno ano 2025, mão de obra qualificada que presta um trabalho intelectualmente exigente, cujo nome até pode aparecer na capa, mas que se vê à rasca para chegar ao fim do mês com os rendimentos que esse trabalho lhe vale?
É verdade que não vivo sozinha, e o meu parceiro, felizmente, ganha mais do que eu.
Mas imaginemos que não era assim. Imaginemos que eu me via sozinha com as minhas duas filhas a ter de pagar uma renda astronómica num pardieiro na periferia de Lisboa, como tantas outras pessoas? (A sério, como é que elas conseguem?) Tu nunca pensas nisso? Se as tuas circunstâncias fossem diferentes, mas tivesses o mesmo montante ao final do mês, conseguirias desenrascar-te? É que eu penso nisso. E ultimamente, tenho pensado mais do que gostaria. E estou mesmo farta desta merda.
E depois admiram-se que eu tenha insónias crónicas.
Gosto muito quando se partilham vulnerabilidades. Acho extremamente corajoso. Não sei como me sentiria se estivesse no teu lugar, admiro como não baixas os braços. E gosto especialmente do plano de livreira. Vemo-nos na Feira? Beijinho
Como eu te entendo!!! Estou precisamente na mesma situação que tu! Ainda no outro dia o Jorge dizia que agora o normal era termos de andar a contar os tostões até ao fim do mês!
Estou farta disto! Cada vez mais sinto que sou tratada como uma simples trabalhadora sem qualificações, quando na realidade andei anos a queimar as pestanas para tirar uma licenciatura e tenho gasto imenso dinheiro ao longo dos anos em atualizações e especializações!!
Estou farta, mas já dei o passo para me livrar disto.
Também sempre me achei introvertida e pouco eloquente na fala, mas olha, que se lixe, vou em frente e reinventar-me! Pior que isto não me parece possível!
Tudo de bom para ti!